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Conversando com Tê - Sobre o Buraco da Agulha


Por Tê Barbosa - 15/09/20008


“Pensar é fácil. Atuar é difícil. Atuar de acordo com o que se pensa é o mais difícil de tudo.”


Outro dia, estava eu ocupada, tentando passar um fio de linha através do buraco de uma agulha de coser. Usei o verbo tentar, porque a minha DNA (data de nascimento antiga) já não está ajudando, mesmo a quatro olhos, a execução desse simples procedimento doméstico.

Justificativas à parte, o tal manuseio me fez divagar desde assuntos banais até o mais profundo questionamento filosófico a respeito da fragilidade das relações humanas. Perguntariam, então, os que me dão a atenção de sua leitura - o que poderia um simples enfiar de linha na agulha, provocar contrastantes pensamentos? Analisemos!

A primeira coisa que se pode pensar ao tentar passar o fio no buraco da agulha, quando a visão não é tão boa como a de antanho, é que a vida, hoje em dia, está difícil mesmo de ser vivida e na maioria das vezes o buraco é pequeno para tantos problemas a resolver e conflitos a administrar. Pensa-se também em alguma decisão importante que se tenha a tomar - se o que achamos a melhor opção não for a certa - Êpa! - erra-se o buraco e temos que recomeçar tudo de novo. Às vezes não dá nem pra dar aquela molhadinha de saliva na linha pra facilitar a passagem.

Outras vezes, simplesmente ficamos a divagar sobre aquele gesto inesperado que, num momento de carência, nos aquece o coração ou aquela voz ao telefone, que ao longe nos chama, nos conta fatos e sonhos, e que ainda nos surpreende com ternura e afeto.  E pegando o fio da meada, lembro que não posso esquecer do bolo assando no forno, de desinformar o manjar no prato, de colocar as roupas na máquina de lavar, de desligar o ferro de passar - que se mistura com outras lembranças e até saudades de um rosto que de repente aparece através do buraco da agulha, que subserviente espera que o acertemos de vez.

Um suspiro sentido e profundo, às vezes, acompanha o movimento de dedos e linha quebrando a monotonia do movimento. Vez outra até chegamos a cantarolar aquela musiquinha dos idos da infância que nos faz lembrar da amarelinha riscada com giz na calçada. Súbito, paramos por causa de uma coceirinha safada na ponta do nariz.

Droga, eu estava quase conseguindo enfiar! A linha no buraco da agulha é claro! E aí, me lembrei que tinha que levar o cachorro pra vacinar; assinar os papéis para o meu filho mais velho pleitear um empréstimo; marcar um almoço com o mais novo; comprar guloseimas para os netos; escrever o texto de Conversando com Te e ainda não esquecer de fazer os doces preferidos das noras porque senão elas não vão me perdoar.

E assim, de pensamento em pensamento, depois de várias tentativas, ainda lutava para enfiar a bendita linha no buraco, que cheguei a xingar um palavrão daqueles cabeludos, imediatamente pedindo desculpas à agulha que, afinal, não tem nada a ver com a minha deficiência visual.

Perdoada, pensei eu, finalmente consegui o grande feito de acertar o buraco - o que veio acompanhado da sensação de que essa impressionante incompetência é momentânea, graças a Deus.  Suspiro, aliviada, e ainda assim me vem um último e filosófico pensamento ao coser o rasgo da minha calça jeans: ah, a eterna fragilidade das relações humanas! É como esse rasgo na calça antiga, que tentamos disfarçar com uma costura precisa, mas que mesmo depois de cuidadosamente cerzida, terá para sempre a aparência surrada.

Deixa pra lá! Vamos encurtar tanto pensar. Aí, o melhor é espantar os pensamentos nefastos e lembrar que, apesar de um buraco de agulha ser sempre apertado, o pior é passar pela vida sem amar ou ser amado. Chovi no molhado, não é mesmo? E pensar que tudo isso foi pensado por causa de um buraco de agulha. Putz!

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