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Violência Contra Parceiros Íntimos

Inferências: O mito historicamente construído da “agressividade e do poder masculinos” interferindo na produção de uma fragilizada subjetividade feminina. 

1. Violência de gênero: As diferenças provocam conflitos
O dia-a-dia no atendimento a vítimas de violência nos força a refletir sobre a violência que se dá entre parceiros íntimos.

Esta forma de violência é percebida praticamente em todos os países, todas as culturas e nos vários níveis da sociedade, sem exceções, embora somente muito recentemente tenha sido reconhecida como um problema social que necessita ser enfrentado e combatido.

Esse tipo de violência inclui, além de atos de agressão física de toda espécie, relações forçadas e outras maneiras de coação sexual, maus-tratos psicológicos como intimidação e humilhação, e controle de comportamento, tal como isolar a pessoa da família e amigos e restringir seu acesso à informação e assistência.

Embora as mulheres possam ter comportamento  agressivo com os seus parceiros e a violência também ocorra entre aqueles do mesmo sexo, inúmeras pesquisas, além das estatísticas  produzidas pelos atendimentos do CEAV apontam que a violência entre parceiros recai de forma muito mais ampla sobre as mulheres, uma vez que um número muito maior de mulheres do que de homens vieram até nós, em busca de acolhimento e orientação, denunciando terem sofrido  maus tratos por parte de  seus parceiros íntimos.

Outro dado importante a que temos acesso em nosso trabalho é a percepção de que a maior parte das vítimas de agressão física é submetida a múltiplos atos de violência durante um longo tempo. Também se observa uma tendência de sofrerem mais de um tipo de violência.

Nossas estatísticas demonstram ainda, que o que motiva a violência inclui  comportamentos banais como, por exemplo, desobedecer ou discutir com o companheiro, questionar-lhe sobre dinheiro,  não ter a comida pronta a tempo, não cuidar devidamente das crianças ou da casa, recusar  relações sexuais ou ser suspeita de infidelidade. 

As estatísticas são claras. O que mais chama a atenção para discussão, a nosso ver, é o fato das pesquisas mostrarem que a maior parte das mulheres é vítima de violência durante muito tempo.  Parece evidente  – com base em estudos e em nossa prática - que somente a orientação às mulheres vítimas de violência e a possibilidade de punição aos seus companheiros não promoverá muita mudança neste quadro de violência.  

É  essencial debater a etiologia da violência contra a mulher e a passiva aceitação, por parte de grande número destas, a fim de refletir  alternativas possíveis e eficazes.

Acreditamos ser essencial iniciar nossa discussão citando que os conflitos de gênero se originam, pela dificuldade em lidar com as diferenças genética e historicamente estabelecidas entre homem e mulher.  Tais diferenças encontram-se explicadas por três escolas diferentes, de acordo com Boff:

“A primeira corrente afirma que o homem e a mulher possuem memória sexual própria, fundada no longo processo de evolução da vida. Esse fator dá origem a comportamentos distintos com características psicológicas próprias. A segunda corrente sustenta que as diferenças sexuais, de personalidade, de papéis e de exercício de poder resultam de condicionamentos, de construções sociais. A terceira vertente esforça-se por recolher o momento de verdade em cada uma das posições anteriores e procura dialetizá-las”.

Logo a seguir, o autor afirma que se filia à terceira escola, por considerá-la menos simplista e, portanto, a que parece conseguir dar conta da complexidade e de uma complementaridade dos gêneros. Ainda segundo ele, os conflitos surgem quando se rompe o equilíbrio, ou seja, quando um pólo busca dominar o outro, como historicamente  ocorreu. Tais conflitos, que podem ocasionar a violência, parecem ocorrer porque o homem “aprendeu” o que é masculinidade dentro de um contexto que sempre atribuiu a ele adjetivos como conquistador, agressivo e poderoso.  Tal suporte inseriu nele a crença de que é superior, necessitando demonstrar seu poder a qualquer custo. 

2. As instituições do matriarcado e do patriarcado
Segundo pesquisas históricas, citadas por Boff (2002), a partir de 10.000 a.C. as culturas eram matriarcais, cabendo a elas a introdução do modo de produção agrícola, com o cultivo de plantas e a domesticação de animais. Durante este período, as mulheres detinham a hegemonia política: mediavam e solucionavam os conflitos e organizavam as sociedades. Por volta de 2.000 a.C. iniciou-se o fim do matriarcado. A partir de então, fundou-se o patriarcado, base da ditadura cultural da masculinidade. Ela perdura até os dias atuais.

Boff acredita que,
“Provavelmente a vontade de dominar a natureza levou o homem a dominar a mulher, identificada com a natureza pelo fato de estar mais próxima aos processos naturais da gestação e do cuidado com a vida.” 

O grave é que os homens conseguiram “naturalizar” essa dominação histórica e introjetá-la nas mulheres, a ponto de muitas aceitarem essa situação como normal. Seria uma representação particular da dialética imposta pelos homens – a dialética do senhor-escravo de Hegel – que impede que a mulher expresse sua diferença e elabore sua subjetividade, marcando as relações com tensão, disputa e desejo de poder.
 

3. O poder e a subjetividade em Foucault
Foucault propõe que as práticas sociais engendram domínios de saber que não somente fazem aparecer novos objetos, novos conceitos, novas técnicas, mas também fazem nascer formas totalmente novas de sujeitos e de sujeitos de conhecimento.

Ele enfatiza a existência de tecnologias de si, o que enuncia que a subjetividade não é nem um dado nem tampouco um ponto de partida, mas algo da ordem da produção. A subjetividade não estaria na origem, como uma variante encarada de maneira naturalista, mas como ponto de chegada de um processo complexo, isto é, como um devir.

Tal proposição do autor quer se referir à sociedade dos séculos V ao XVIII como apresentando um tipo de poder que ele chamou de disciplinar. Nesse período a subjetividade seria desenvolvida a partir de uma forma de poder que atuava no disciplinamento dos corpos, utilizando os mais variados tipos de penalidades.

A partir do século XVIII, a sociedade disciplinar passou a atuar não somente através da punição, mas principalmente através da vigilância, do controle simbólico do sujeito.

Podemos perceber claramente o pensamento foucaultiano ao observarmos uma relação familiar violenta dos dias atuais; o que nos permite entender que  durante séculos, o homem fez uso do poder que a sociedade patriarcal lhe outorgou, com o objetivo explícito de disciplinar e controlar sua parceira, “produzindo” através desta forma de relação,  um tipo particular de subjetividade feminina. 

Tal concessão de poder chegou a permitir a ele a prerrogativa de castigar sua mulher; tendo esse direito assegurado pela lei e legitimado culturalmente. Como um exemplo dessa possibilidade, pode-se citar Soares (1999) revelando que, durante todo o período da América colonial e durante algum tempo depois da declaração de independência, a lei não apenas protegia o marido que disciplinasse sua esposa através de castigos físicos, mas também lhe conferia explicitamente esse direito, ainda que sugerisse moderação.

Esse tipo de atitude, que tolerava a agressão contra a mulher ingressou na cultura americana pelo direito inglês. Este, especificamente, possuía uma lei que permitia a um marido bater legalmente na esposa com uma vara.

Na história do Brasil, também podemos encontrar a lógica do poder disciplinador de Foucault. Como cita Soares:
“a existência da figura delituosa do adultério, a importância cultural dada à honra masculina, a necessidade de controlar a legitimidade da  prole(...) atrelada ao reconhecimento dos estados emocionais alterados, articularam-se  para configurar a tese da “legítima defesa da honra” como justificativa legalmente aceita para a absolvição dos homens que mataram suas mulheres.”

Esse mito da masculinidade que promoveu a crença inabalável de que o homem era o portador do saber/poder que Foucault destacou, dominou a maioria das sociedades humanas até por volta da década de setenta, quando os movimentos feministas tiveram seu apogeu, atuando na tentativa de modificação desse status quo.   Até então, a violência contra a mulher não era vista sequer como um problema social, já que era considerada como uma questão privada, familiar, que deveria permanecer oculta pelo silêncio.

Parece-nos ficar claro que tal contexto social - de marcante demonstração do poder masculino - que se estendeu por séculos, atuou, de modo contundente, no sentido da produção de formas de subjetivação por ele engendradas. As características mais marcantes desse modelo de subjetividade, ainda segundo Soares (1999) seriam uma baixa auto-estima, a crença em todos os mitos acerca dos relacionamentos violentos e no estereótipo do papel sexual prescrito às mulheres, a aceitação da responsabilidade pelas ações do agressor; o sentimento de culpa, a aparência passiva, a expressão de reações graves de estresse, com queixas psicofisiológicas, uma perda de confiança nas pessoas,  dependência – em todas as suas formas - e medo. 

Esta mulher, que introjetou essa “condição feminina”, aprendeu ainda a acreditar nos valores tradicionais relativos à família; aceitando viver em isolamento; e a perder as esperanças de poder fazer algo para escapar da relação violenta.

Importante ressaltar que tal forma de analisar a subjetividade feminina não tem intenção de fazer apologia ao já ultrapassado modelo de causa e efeito, que propõe que a causalidade seja considerada linear. Acreditamos numa causalidade circular. Analisada sob este prisma, a parceria íntima pode ser encarada como um circuito de retroalimentação, dado que o comportamento de uma das pessoas afeta e é afetado pelo comportamento da outra pessoa.  Neste sentido, segundo Calil:
“(...) a própria teoria sistêmica vai propor que cada família desenvolve formas básicas, específicas de transações, ou seja, uma seqüência padronizada de comportamentos, de caráter repetitivo, que garantem a organização familiar e que permitem um mínimo de previsibilidade sobre a forma de agir de seus membros”.

Tal visão não apresenta, em nossa opinião, qualquer discrepância com o pensamento proposto anteriormente. Em nossa forma de ver, a teoria sistêmica apenas enriquece a teoria que explica a construção da subjetividade proposta por Foucault. A concepção sistêmica percebe a família como um sistema homeostático, no qual modificações no comportamento de um membro provocam, através de um processo de feed back, uma variação corretiva na resposta dada pelo sistema, ou, em outras palavras, quando uma das partes apresenta qualquer tipo de mudança em relação a outra, esta outra atuará sobre a primeira de forma a diminuir e modificar a mudança que foi apresentada.

Portanto, nos parece que a visão sistêmica permite  analisar a relação violenta entre homem e mulher como uma relação complementar, onde o primeiro repete as atitudes e comportamentos agressivos aprendidos, muitas vezes  em sua família de origem e reforçados em seu meio social, e a segunda, a fim de atuar na manutenção da homeostase familiar e repetindo também padrões culturais, se encolhe, “reafirmando” para o outro e para si mesma toda a sua insignificância.

Qualquer tentativa de transformação desse status quo, que venha a desorganizar o sistema familiar é imediatamente “abafada” por nova demonstração de poder, geralmente caracterizada pelo aumento da violência. 

Tal descrição da relação familiar, proposta pela teoria sistêmica, não nos parece, portanto, destoar das idéias colocadas por Foucault. Podemos perceber claramente nestas relações, a força de um saber/poder pré-estabelecido culturalmente, que vai atuar no sentido de manter a homeostase, dificultando as possibilidades de construção de uma subjetividade feminina, que não aquela culturalmente produzida sob a égide da fragilização e do imobilismo.  

Apesar de ser inegável, atualmente, e em grande parte por influência dos movimentos feministas, que estamos diante um processo de transformação no contexto social contemporâneo, em busca de equidade entre o masculino e o feminino, podemos afirmar que, em nossa prática de atendimento a vítimas de violência, temos nos deparado com um grande número de mulheres que se inscrevem perfeitamente no modelo de personalidade que descrevemos acima, ou seja, mulheres que ainda se vêem como seres inferiores na relação afetiva. 

Tal percepção parece denotar a dificuldade em modificar um modelo introjetado por uma cultura machista de milhares de anos, provavelmente já arraigado no inconsciente feminino.

Neste momento, nos questionamos sobre quanto tempo será ainda necessário para uma mudança desses paradigmas que atuam, no sentido de provocar a imobilização da mulher vítima de violência. Quantas descobertas científicas e transformações culturais serão necessárias para promover a construção de novas formas de subjetivação?

Além de uma série de leis que surgiram, no mundo todo, provocadas, em grande medida, pela atuação das feministas, a fim de provocar tais mudanças, pode-se afirmar, como cita Boff (2002), que um grande passo concreto para tal modificação de paradigmas ocorreu depois da decifração do código genético, por volta de 1950, que comprovou a unidade da cadeia da vida, demonstrando que seres de várias espécies tais como algas, árvores, bactérias, peixes, animais e humanos descendem todos de uma única forma originária de vida. A recente decodificação do genoma humano, em 2000, deu mais um importante passo, confirmando o parentesco existente entre todos os organismos vivos.  Tais descobertas certamente são vistas como fundamentais para a facilitação da promoção de igualdade entre todos os seres humanos, mas de modo especial, entre os gêneros.

Além da importância destas descobertas científicas, acreditamos também ser fundamental o trabalho com homens e mulheres envolvidos em situações de violência, na tentativa de levar até eles a discussão sobre gênero, buscando ser agentes de uma transformação cultural que venha possibilitar a aceleração do processo de formação de novas formas de subjetivação, tanto masculinas, quanto femininas; formas essas que possibilitem encarar as diferenças como complementares, ao invés de percebê-las, como historicamente acontece, como antagônicas. Atuar no intuito de participar da promoção de uma transformação cultural que possibilite novas construções subjetivas tem sido um dos objetivos maiores do trabalho do CEAV. 

No sentido desta evolução humana, acreditamos que Boff revela os princípios norteadores de nossa rotina de trabalho, quando ressalta que:
“(...) Essas distorções marcam a história das relações de gênero, como uma via-sacra de sofrimentos para as mulheres. Elas só serão superadas e curadas à medida que fizermos valer, teórica e praticamente, a referência valorativa básica da reciprocidade, da parceria, da cooperação, da vivência democrática e da convergência nas diferenças.”

Fonte: Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Petrópolis
Projeto do CEAV - Centro de Atendimento à Vítimas da Violência.

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